A “neurocosmética” avança a galopes. Alguns trabalhos científicos propõem respostas aos anseios do homem por substâncias que melhorem o desempenho da mente. Alguns autores são mais enfáticos, ao concluir que determinadas substâncias podem engendrar os desejados benefícios à memória, atenção e humor.
Por exemplo, um grupo japonês crava que a l-teanina, composto encontrado naturalmente no chá verde, “claramente tem um efeito pronunciado na performance da atenção e no tempo de reação em voluntários saudáveis e normais com tendência a maior ansiedade", após ensaio clínico num grupo de universitários.
Outro retrato dessas afirmações incisivas é a conclusão de uma dupla de cientistas de Oxford e Harvard, após revisar estudos sobre uma substância totalmente diferente. Dessa vez, uma droga controlada – e com efeitos desconhecidos em longo-prazo – chamada modafinila.
Nas palavras desses pesquisadores, “quando avaliações complexas são utilizadas, a modafinila parece gerar melhorias na atenção, funções executivas e aprendizado de modo consistente” em pessoas saudáveis, sem déficits cognitivos.
É claro que essas conclusões também podem ser contestadas. E devemos sempre considerar os riscos envolvidos. Porém, se fôssemos assumir que essas substâncias são mesmo vantajosas ao nosso desempenho mental, é legítimo ou ético usá-las?
Como diz o filósofo Mário Sérgio Cortella, “ética é o conjunto de valores e princípios que usamos para responder a três grandes questões da vida: (1) quero?; (2) devo?; (3) posso? Nem tudo que eu quero, eu posso; nem tudo que eu posso, eu devo; e nem tudo que eu devo, eu quero”. Embora soe atrativo, por exemplo, que a l-teanina ou a modafinila melhorem a atenção, será que podemos usá-loa?
A modafinila é um fármaco controlado – não é possível usá-lo sem prescrição médica. Ainda que, mesmo assim, pudéssemos usá-la, os riscos de um medicamento controlado à saúde provavelmente não compensariam eventuais "benefícios" que foram observados apenas em curto-prazo.
Mas podemos livremente usar a l-teanina: ela é mais concentrada no chá verde do tipo ‘matchá’ e também é vendida como suplemento alimentar. Mas devemos usá-la para melhorar a atenção? É ético?
A discussão é ainda mais nebulosa ao considerarmos, por exemplo, que 73% de um grupo de estudantes de Medicina analisados em uma pesquisa já usam o café propositadamente para dar um ‘upgrade’ na capacidade intelectual. Bom, a cafeína melhora algumas funções cognitivas e o humor em situações de fadiga. E ninguém torce o nariz para quem bebe um cafezinho para espantar o sono e render mais no trabalho – ou seja, melhorar o desempenho mental.
Então, seria condenável suplementar a l-teanina (o tal composto do chá verde), por exemplo, para aumentar a atenção? Ou talvez a l-tirosina, um aminoácido (encontrado em alimentos), que “parece melhorar a performance cognitiva de forma eficaz, em particular em condições estressantes ou que demandam muito da cognição”, para parafrasear o resumo de um artigo.
Ao mesmo tempo, o consumo de álcool, substância que também afeta o cérebro, o comportamento e o intelecto, é socialmente aceito. O álcool, porém, tem efeitos negativos: pode “resultar em prejuízos às funções executivas de planejamento, memória operativa e flexibilidade cognitiva” e em danos à estrutura do cérebro. Se o álcool é tolerado em nossa sociedade, por que seria condenável utilizar, por exemplo, a Bacopa monnieri – erva tradicionalmente empregada há milênios para beneficiar a memória e que, segundo pesquisas, poderia ter efeitos neuroprotetores?
A neuroética e o uso responsável de melhoradores cognitivos
Em artigo de opinião na Nature, cientistas falam sobre "uso responsável de drogas melhoradoras da cognição pelos saudáveis" |
É claro: são muitas as variáveis envolvidas nesses questionamentos. Respostas simplistas não encerram a questão. Junto com a Neurocosmética, tem crescido a Neuroética. Cientistas têm escrutinizado os aspectos éticos envolvidos no uso de nootrópicos e ‘smart drugs’.
Um grupo de especialistas conceituados – Barbara Sahakian (Universidade de Cambridge), Henry Greely (Stanford University), John Harris (The University of Manchester), Ronald C. Kessler (Harvard Medical School), entre outros – publicou um artigo de opinião na prestigiada revista Nature (imagem acima). Eles clamam pelo “uso responsável de melhoradores cognitivos pelos saudáveis”.
“A sociedade deve responder às demandas crescentes pelo melhoramento cognitivo. Essa resposta deve começar rejeitando a ideia de que ‘melhoramento’ é uma palavra suja”, argumentam. “O melhoramento cognitivo tem muito a oferecer aos indivíduos e à sociedade, e uma resposta social apropriada envolverá tornar esses melhoramentos disponíveis enquanto se administram seus riscos”, escrevem.
Para eles, as drogas podem até parecer diferentes de outros métodos “naturais”, como alimentação e exercício, também usados para melhorar as funções mentais, já que alteram a função do cérebro. “Mas, na realidade, qualquer intervenção que melhora a cognição [também altera a função cerebral]. Pesquisas recentes têm identificado mudanças neurais benéficas provocadas pelo exercício, nutrição e sono (...)”, argumentam.
Será que essas substâncias seriam uma forma de trapacear? “No contexto de esportes, o melhoramento do desempenho através de fármacos é, de fato, trapaça. Mas, é claro, é trapaça porque é contra as regras. Qualquer bom código de regras precisaria distinguir os métodos de melhoramentos cognitivos permitidos hoje, desde ter professores particulares a cafés espressos duplos, dos novos métodos, se eles precisam ser banidos”.
Os pesquisadores reconhecem algumas preocupações éticas, como segurança. Para eles, os prós e os contras dessas intervenções devem ser colocados na balança – e isso exige mais estudos científicos para, por exemplo, analisar possíveis efeitos colaterais em longo prazo. “Reivindicamos uma abordagem baseada em evidências para a avaliação dos riscos e benefícios dos melhoramentos cognitivos”, escrevem eles.
Para eles, a solução está na construção de políticas que proíbam esse tipo de coerção, exceto em situações muito específicas, como na hipótese do cirurgião. “Empregadores, escolas ou governos não devem exigir, em geral, o uso de melhoradores cognitivos”, consideram eles.
Uma última preocupação ética é a justiça. Imagine concurseiros que competem por um número limitado de vagas de emprego. Alguns têm acesso, durante a preparação para uma prova, a um nootrópico hipotético com bom perfil de segurança e capaz de melhorar o aprendizado. Outros não têm acesso – talvez por recursos financeiros. “Seria injusto permitir alguns, mas não todos, os estudantes de usar melhoradores cognitivos”, argumentam os pesquisadores.
Para eles, a solução deve passar novamente por políticas que governem o uso de melhoradores cognitivos. Essas políticas “em situações competitivas devem evitar exacerbar inequidades socioeconômicas (...)”. Eles consideram até mesmo que eventuais disparidades podem ser mitigadas “concedendo a cada participante da prova acesso livre a melhoradores cognitivos” – o que soa utópico, e, reconhecem eles, poderia até criar uma pressão indireta pelo uso de substâncias que melhorem o desempenho cognitivo.
"Precedente" em outras áreas da Medicina, segundo autores na Nature
Outra questão: diante de pacientes que desejam aumentar o rendimento intelectual, será que médicos podem ou devem prescrever uma droga capaz de melhorar a cognição? Para os pesquisadores, isso dependerá da filosofia do profissional. Médicos que entendem a Medicina como forma de curar os doentes, e não de melhorar os saudáveis, irão desaprovar.
Contudo, “aqueles que enxergam a Medicina de forma mais ampla, como forma de ajudar pacientes a viver melhor ou atingir seus objetivos estariam abertos para considerar esse tipo de pedido”, dizem os cientistas. “Há certamente um precedente para essa visão mais ampla em alguns ramos da Medicina, como Cirurgia Plástica, Dermatologia, Medicina do Esporte e Medicina da Fertilidade”. Todas essas são áreas que visam ‘aprimorar’ pessoas saudáveis ou ampliar e otimizar suas capacidades naturais.
Diante de tudo isso, os autores desse artigo da Nature concluem que:
“Como todas as novas tecnologias, o melhoramento cognitivo pode ser usado de uma forma positiva ou negativa. Nós devemos acolher novos métodos de aprimorar nossa função cerebral. Num mundo em que o tempo de trabalho e o tempo de vida estão aumentando, ferramentas de melhoramento cognitivo – incluindo as farmacológicas – serão cada vez mais úteis para aumentar a qualidade de vida e estender a produtividade no trabalho, assim como afastar o declínio cognitivo normal (relacionado à idade) e patológico.
Melhoradores cognitivos seguros e efetivos beneficiarão ambos indivíduo e sociedade. Mas seria também insensato ignorar problemas que o uso de tais drogas poderia criar ou exacerbar. Com isso, assim como em outras tecnologias, precisamos pensar e trabalhar duro para maximizar seus benefícios e minimizar seus danos”.
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