Reprodução de tela de website brasileiro de farmácia de manipulação que comercializa Noopept |
"Noopept: concentração, memória, neuroprotetor, cognição e aprendizado", anuncia, em uma página de vendas, uma farmácia de manipulação de Santa Catarina (SC). "Noopept: melhora do aprendizado e memória, potente neuroprotetor, efeito nootrópico", alega outra empresa do mesmo ramo, também de SC, num folheto informativo publicado online.
Na Rússia, o Noopept é comercializado para tratar um amplo leque de doenças que causam problemas de memória, atenção ou condições que, genericamente, manifestem "sinais de decréscimo da produtividade intelectual". Num anúncio publicitário, os russos afirmam que o Noopept "ajuda a preservar não só uma excelente memória, mas também uma mente afiada".
Na Rússia, anúncios publicitários afirmam que o Noopept - foto do medicamento acima - ajudaria a preservar uma "excelente memória". |
Fora das terras de Putin, porém, o Noopept ainda não foi aprovado, ou sequer analisado, para o uso humano por agências sanitárias. Por isso, em teoria, o Noopept não poderia ser comercializado. Nessas condições, seu consumo não é recomendado.
Adam McDonald, irlândes e com Mestrado em Ciências Nutricionais (sic) aventurou-se a usar a substância apesar desses riscos e, ao fim de 30 dias, publicou uma "resenha" de sua experiência no Youtube. Ele conta que decidiu avaliar objetivamente a eficácia da substância como melhorador intelectual - para isso, usou testes cognitivos da Universidade de Cambridge, disponíveis online. Os testes refletem o desempenho em áreas de raciocínio, proficiência verbal, concentração e memória.
"Eu não estava ficando mais inteligente, nem aumentando meus pontos em nenhuma das áreas", conta ele. "Foi quando eu comecei a duvidar dos seus efeitos, ou ao menos em pessoas saudáveis". Por outro lado, ele afirma que sentiu um benefício na ansiedade. "Também pareceu elevar um pouco o humor (...)", adiciona, relatando também efeitos como maior motivação para trabalhar, embora note que esses benefícios não foram tão notáveis quanto ao de outros suplementos.
O que realmente se sabe sobre essa substância? Confira aqui uma revisão completa sobre o Noopept.
O que é o Noopept?
É impossível falar sobre o Noopept sem antes conhecer o piracetam - que é a droga que inspirou o seu desenvolvimento.
O piracetam foi inventado nos anos 1950 e, nas pesquisas, revelou-se uma substância "capaz de melhorar a memória prejudicada, por exemplo, pela terapia eletroconvulsiva ou hipóxia (falta de oxigênio no cérebro)", conforme explica Rita Ostrovskaya (ao lado), uma das estudiosas que desenvolveu o Noopept.
Foi aí que o piracetam estreou a classe dos ‘nootrópicos’ – nome empregado pelo próprio criador do piracetam para indicar substâncias que, como sua criatura, supostamente melhorariam o desempenho mental e protegeriam o cérebro, com pouca toxicidade.
O piracetam logo chegou às prateleiras das farmácias. Segundo a bula, o medicamento é indicado para tratar déficits cognitivos - como perda de memória, distúrbios de atenção e falta direção em síndromes psico-orgânicas.
E em pessoas saudáveis? Há um amplo uso do piracetam entre esse público, que alega que a substância proporcionaria uma melhora do aprendizado, raciocínio e fluidez verbal. Mas, além do risco de efeitos colaterais, não há evidências científicas categóricas de que o piracetam seja eficaz em beneficiar o intelecto de pessoas saudáveis. Expliquei mais sobre tudo isso num post anterior.
É que o Noopept surgiu de uma empreitada por uma versão '2.0' do piracetam. Cientistas da Academia Russa de Ciências Médicas ambicionavam corrigir alguns 'defeitos' do piracetam. Rita Ostrovskaya, co-criadora do Noopept, explica: "[O piracetam] tem muitas desvantagens. Ele só funciona em doses muito altas (...). E em algumas pessoas ele não funciona muito (...) Nossos químicos decidiram fazer algo com o piracetam para melhorá-lo".
Inventivos, eles desenvolveram um dipeptídeo – conjunto de dois aminoácidos –, com algumas modificações estruturais, buscando 'imitar' a estrutura do piracetam. Foi um design estratégico, a fim de tornar a substância mais biodisponível (aproveitada pelo corpo). "Se você usa 2 aminoácidos apenas - os chamados dipeptídeos - é diferente, pois eles são bem estáveis e eles penetram bem no cérebro", explica Ostrovskaya.
Daí nasceu o Noopept nos anos 90 – um nootrópico e dipeptídeo.
E deu certo? Se você perguntar aos criadores russos, eles consideram o Noopept um sucesso. Primeiro porque o Noopept atingiu o mesmo efeito do piracetam em estudos em animais, mas com doses bem menores. “Em essência, o Noopept é de 200 a 50.000 vezes mais potente que o piracetam como um agente nootrópico, ao se compararem as doses", avaliaram os russos em um estudo publicado no Journal of Psychopharmacology.
Ou seja: as doses efetivas do piracetam estão na ordem das gramas, enquanto as do Noopept estariam na casa das miligramas. Desse modo, o Noopept é vendido em pequenos comprimidos brancos na Rússia, como mostrado abaixo:
Comprimido de Noopept, vendido na Rússia |
Rita Ostrovskaya adiciona: "Você pode apreciar a diferença quantitativa. E também há diferenças qualitativas, pois nossa substância [o Noopept] funciona de uma maneira melhor, num leque mais amplo de doenças".
Para comprovar isso, ela cita pesquisas em animais. Nelas, cientistas testaram o poder do Noopept para tratar simulações de um trauma craniano ou isquemia cerebral (falta de oxigênio no cérebro) em roedores e coelhos. "Em todos esses modelos, nossa substância funciona muito bem. E não é tóxica", diz a pesquisadora.
Os pesquisadores também afirmam que o Noopept é superior ao piracetam em sua capacidade de melhorar a memória. "Diferente do piracetam, que facilita apenas os estágios iniciais do processo de memorização, o Noopept influencia positivamente também as etapas de consolidação e recordação da memória", escreveram em um periódico russo.
Por conta disso, os pesquisadores russos chamaram o piracetam de "nootrópico de primeira geração", enquanto descreveram que o Noopept "pertence à mais moderna geração de nootrópicos, com propriedades neuroprotetoras peculiares".
Para que serve o Noopept?
Noopept, em anúncio publicitário russo. Droga serve para tratar déficits cognitivos em um leque de doenças |
O Noopept é aprovado como medicamento somente na Rússia. Segundo a bula russa, o Noopept serve para "deteriorações na memória, atenção e outras funções cognitivas e na labilidade [fragilidade] emocional". Assim, trata sintomas genéricos, comuns ao vasto leque de doença, entre elas (segundo a bula):
- Consequências de traumatismo craniano
- Síndrome pós-concussão
- Insuficiência cerebrovascular (encefalopatia de várias origens) - situações em que há pouco abastecimento sanguíneo ao cérebro
- Doenças astênicas - doenças que causam exaustão psíquica ou física
- Outras condições com sinais de decréscimo da produtividade intelectual
No Brasil e em outros países do Ocidente, o Noopept não foi avaliado por agências sanitárias, como a Anvisa. Portanto, não foi aprovado para uso médico - ou qualquer outro uso - em humanos e não tem autorização para ser comercializado. Amostras eventualmente vendidas no Brasil não possuem segurança sanitária para o consumidor (podem ser adulteradas, ter procedência suspeita ou fazer mal à saúde).
O Noopept funciona? Para que ele é eficaz?
Noopept comercializado na Rússia. Imagem reproduzida de anúncio publicitário russo. |
Muito do que se fala no Ocidente sobre o Noopept gira ao redor de estudos em animais. Mas resultados desses trabalhos não podem ser extrapolados para humanos com total confiança. Também há os relatos de quem se aventurou a usar a substância, apesar dos riscos. Tais anedotas estão sujeitas ao efeito placebo.
Infelizmente, há poucas pesquisas acessíveis fora da Rússia que comprovem os efeitos nootrópicos do Noopept em humanos. "Embora o Noopept seja pregado como um suplemento que melhora a cognição, pouca evidência clínica corrobora seu uso", afirma a Alzheimer's Drug Discovery Foundation.
Estudo comparou os efeitos do Noopept e do piracetam no tratamento de pacientes com doenças de origem vascular e traumática |
O único ensaio clínico com revisão por pares sobre o Noopept foi publicado no periódico Neuroscience and Behavioral Physiology - nele, cientistas levaram o Noopept e piracetam para o "ringue". Eles compararam a eficácia do Noopept (10 mg, 2 vezes ao dia) e do piracetam (400 mg, 3 vezes ao dia) em pacientes de 18 a 60 anos.
Eles apresentavam problemas de fluxo sanguíneo ao cérebro ou sofriam com sequelas de um trauma cerebral. Daí, apresentavam uma série de problemas emocionais (que os russos chamam de 'sintomas neuróticos', como ansiedade, fraqueza e fadiga) e também déficits cognitivos leves.
Após 56 dias de tratamento, pacientes dos dois grupos - o que recebeu Noopept e o que recebeu piracetam - melhoraram em vários aspectos do humor e desempenho intelectual. Houve ganhos de pontos num teste cognitivo que é usado para a triagem de demências. Porém, houve evidências de que "a eficácia do Noopept foi significativamente maior que a do piracetam" para os pacientes.
O Noopept revelou "efeitos nootrópicos, com ações psicoestimulantes, incluindo efeitos anti-astênicos [anti-cansaço] e ansiolíticos, efeitos positivos em doenças hipotímicas [de humor deprimido] e sono", segundo os autores, com um perfil de ações distinto do piracetam
Nenhum estudo revisado por pares investigou os efeitos do Noopept em pessoas saudáveis e sem problemas cognitivos. Ou seja: não há comprovação da eficácia, nem segurança do Noopept nesse público.
O que se sabe sobre os efeitos do Noopept no cérebro?
Mais estudos em humanos são necessários para entendermos como o Noopept age. Contudo, pesquisas in vitro e em animais sugerem alguns mecanismos de ação.
Neuroproteção
Nesses estudos, o Noopept revelou exercer atividades neuroprotetoras, resguardando o cérebro de danos causados pelo excesso de cálcio e glutamato (como no AVC ou associado a outros fatores de estresse). "A ação da droga é baseada no seu efeito antioxidante, sua ação anti-inflamatória, a capacidade de inibir a neurotoxicidade pelo excesso de cálcio e glutamato, e por melhorar o fluxo sanguíneo", afirmam pesquisadores num periódico russo.
Aumento de neurotrofinas (BDNF e NGF)
A partir de um estudo em ratos, pesquisadores concluíram que o Noopept aumenta os níveis das neurotrofinas BDNF e NGF - espécies de "fertilizantes cerebrais", que são importantes para a sobrevivência neuronal e crescimento de novos neurônios. Essas neurotrofinas ajudam os neurônios a se conectar e a reorganizar as sinapses entre eles. Ou seja: isso favorece a neuroplasticidade - que é a base biológica para a capacidade de memorização e aprendizado.
Aumento da transmissão de acetilcolina
Outro estudo em animais sugeriu que o Noopept teria efeitos colinérgicos (aumentando a transmissão de acetilcolina, neurotransmissor envolvido com a memória). Por fim, os russos ainda apontam que o Noopept é metabolizado em ciclo-prolilglicina, uma substância endógena (do próprio corpo) que beneficiaria a cognição.
E quais os efeitos colaterais do Noopept? Qual sua segurança?
"O Noopept é associado com alguns efeitos colaterais leves, segundo evidências clínicas limitadas", diz a Alzheimer's Drug Discovery Foundation. Possíveis efeitos colaterais do Noopept incluíram problemas de sono, irritabilidade e aumento da pressão arterial, segundo o único ensaio clínico disponível.
"Está sendo usado na prática há um longo tempo [na Rússia] e não há efeitos adversos, exceto por um", diz Rita Ostrovskaya, co-criadora do Noopept. A exceção seria o aumento de pressão arterial em pessoas com alguma predisposição a esse efeito.
A segurança do Noopept nunca foi avaliada em larga-escala, num ensaio clínico com muitas pessoas. Isso significa que pode haver muito o que não sabemos ainda. Outro problema é o fato de que a substância não foi aprovada para uso humano no Brasil, como já foi dito e, por isso, não há segurança sanitária para sua comercialização no país.
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