domingo, 5 de julho de 2020

Piracetam: o pai dos nootrópicos

"Sem querer", cientistas criaram o piracetam, uma droga que ajudava pacientes a "raciocinar melhor". O piracetam estreou uma nova classe de drogas aliadas do intelecto - os nootrópicos



Nootrópicos: uma nova classe de substâncias
São 8 horas da manhã e você tem uma tonelada de um denso material para estudar, a fim de se preparar para uma prova que se aproxima. Você está um tanto sonolento - e sabe que a sessão de estudos será puxada e desgastante. Que tal um cafezinho? Se a ideia lhe soa atraente, então você está de alguma forma familiarizado com a ideia de um nootrópico.

O termo nootrópico nasceu nos anos 70: um cientista romeno, Giurgea, criou a palavra para descrever os efeitos únicos de uma droga que criou - o piracetam. Segundo Giurgea, os nootrópicos como o piracetam são substâncias que aumentam aprendizagem, memória e melhoram as funções cognitivas superiores - aquelas que exigem raciocínio e processamento complexo. 


Mas diferente de drogas como as anfetaminas, Giurgea defende que nootrópicos tem ação neuroprotetora e poucos efeitos colaterais [1, 2]. "A administração de nootrópicos protegeria o cérebro de toxinas e minimizaria os efeitos do envelhecimento cerebral", estabelecem alguns cientistas [3]. Segundo Giurgea:
“Os nootrópicos, na minha opinião, deveriam ser aceitos como uma categoria distinta, já que melhoram primária e diretamente as funções intelectuais, cognitivas, do cérebro" [4].

Apesar do protótipo dessa classe de drogas ter sido o então criado piracetam, a definição cai como uma luva para substâncias que já existiam há muito tempo. Alguns entendem a cafeína como um nootrópico, pois, ao mesmo tempo em que é segura, melhora a atenção e alerta [5]. Outros expandem o conceito para ervas como ginkgo, ginseng, Bacopa monnieri e Rhodiola rosea [3].

O piracetam: "raciocínio melhor"


O piracetam é um fruto do acaso. Nos anos 60, cientistas pesquisavam o piracetam para tratar a ansiedade. Os resultados foram decepcionantes, mas a droga foi redirecionada para um fim inesperado: melhorar o intelecto.

Pacientes que haviam sofrido concussão e que receberam piracetam “pareciam raciocinar melhor” e ter ganhos de memória. Pais de crianças com epilepsia notaram, sob efeito do piracetam, “alguma melhora na eficiência mental geral” em seus filhos [4].

Daí, a droga foi lançada no mercado como Nootropil - aqui no Brasil um medicamento (e, portanto, só deve ser utilizado sob prescrição médica). Segundo sua bula, o Nootropil é indicado para tratar "perda de memória, distúrbios da atenção e falta de direção" [6].

Relatos do piracetam: de "melhor fluência verbal" a cores mais vívidas

O uso do piracetam se disseminou entre pessoas saudáveis, conforme observa-se em fóruns estrangeiros que reúnem entusiastas de nootrópicos (novamente: a prática de automedicação é desencorajada). Há uma constelação de relatos de pessoas que sentem que melhoraram seu desempenho intelectual ao usar o piracetam. 

Elas falam de um aumento da memória e da fluência verbal. Alguns também citam um efeito curioso de "realce" das cores e uma visão mais precisa.

Esse tipo de relato é sujeito ao efeito placebo - ou seja, uma percepção de melhora que não 
corresponde à realidade. Apenas estudos científicos controlados podem constatar se uma substância de fato tem determinado efeito, como melhora de alguma função mental, como atenção ou memória. De qualquer forma, vamos conferir algumas dessas histórias sobre o piracetam:

"Foi um presente divino pelos primeiros 2 meses, com melhora perceptível da fluência verbal, recordações importantes para o trabalho técnico que faço, melhora da memória operativo (principalmente notei que conseguia raciocinar muitos cálculos e dados que faço na cabeça, sendo que normalmente preciso de papel e caneta). Até me gabei de como conseguia fazer cálculos de longos dígitos na cabeça. E então parou de fazer efeito. Sem mais melhoras da memória [7]. 
"Aumento moderado da retenção de memória, mas o maior efeito foi na expressão verbal. Eu conferi alguns dos meus trabalhos escritos daquela época e houve uma mudança na estrutura das minhas frases. Os efeitos gradualmente sumiram um mês depois que parei" [7]. 
"Resultados imediatos. Quanto à acuidade visual, tudo se tornou cristalino, eu notei os contrastes mais agudos em quase qualquer objeto, e cores pareciam mais vibrantes. Mais ainda, minha fluência verbal foi para as alturas, e meu vocabulário não era mais limitado. Me peguei dizendo palavras que nunca usaria em conversas - é o que eu mais adoro no piracetam. Eu notei uma melhora substancial na memória, nada profundo. Mas nunca mais tive aqueles brancos, que foi mais do que suficiente para mim" [8].
E o piracetam funciona mesmo?

Segundo a bula técnica do piracetam, "tanto em animais como em seres humanos, as funções envolvidas em processos cognitivos como aprendizagem, memória, atenção e consciência foram aprimoradas, em indivíduos normais assim como naqueles com deficiências destas funções, sem o desenvolvimento de efeitos sedativos ou psicoestimulantes"  [6].

Porém, são poucas as pesquisas que comprovam um efeito do piracetam em pessoas jovens e saudáveis. Com isso, os relatos apaixonados sobre esse medicamento encontram pouco respaldo simplesmente porque o piracetam foi pouco estudado numa população sadia.

Um dos poucos estudos acumula teias. Em 1976, pesquisadores verificaram se o piracetam beneficiaria a memória de 16 jovens universitários [9]. Para isso, separaram os alunos num grupo que usou placebo e, outro, piracetam (4,8 g por dia, dividido em três doses). Verificaram que, após 2 semanas, quem usou piracetam conseguia decorar maior número de palavras.

Assim, mais estudos - mais modernos, com mais voluntários - são necessários para que possamos ter certeza se o piracetam melhora a memória ou outra função cognitiva em pessoas saudáveis, ou se apenas compensa déficits intelectuais de pessoas com alguma doença.

Como o piracetam age no cérebro?
Os efeitos do piracetam no cérebro não foram completamente cartografados. Mas cientistas registraram algumas ações dessa droga. 

Modificação da atividade elétrica do cérebro
O piracetam alterou os exames de eletroencefalograma de pessoas saudáveis, indicando que de fato modifica a atividade cerebral [10]. As mudanças do eletro sugerem "um aumento da cooperatividade dos processos funcionais do cérebro". Pela interpretação dos estudiosos:
"Uma dose moderada de piracetam leva a uma ótima coesão das funções cerebrais, permitindo melhor performance cognitiva" [10].
Aumento do fluxo de sangue
Esse efeito não foi verificado em pessoas saudáveis. Porém, em pacientes que sofreram infarto cerebral e ficaram com afasia (perda de linguagem), o causou um aumento do fluxo de sangue para regiões do cérebro envolvidas com o processamento de informações verbais, segundo exames de tomografia [11]. Uma melhora do fluxo sanguíneo cerebral também foi observado em idosos [12].

Melhora da neuroplasticidade
Toda vez que você aprende, experimenta ou conhece algo novo, seu cérebro muda. Os neurônios fazem novas conexões, chamadas sinapses. Quanto mais você repete uma informação, mais intensamente ela é registrada - você forma sinapses mais robustas. Isso é a neuroplasticidade - a  o coração da memória e do aprendizado.

O piracetam poderia favorecer esse processo [13]. Estudos em animais mostram que o piracetam recupera circuitos neuronais comprometidos pelo álcool. No hipocampo - região do cérebro envolvida com a memória - houve aumento de 20% das sinapses [14]. Um possível mecanismo é porque a droga atua em receptores do neurotransmissor glutamato, importantes para os processos de neuroplasticidade [15].

O piracetam estimula a liberação de acetilcolina pelos neurônios, pelo menos em animais idososA acetilcolina é um mensageiro químico que tem importante papel na formação de memórias e no aprendizado. Ter mais acetilcolina nas sinapses - até certo ponto - poderia favorecer essas funções (especialmente se há um déficit de acetilcolina) [16]. Excesso não é desejável. Não se sabe se esses efeitos de fato ocorrem em pessoas saudáveis.

Piracetam e colina: combinação
Avião sem asa, fogueira sem brasa, assim é o piracetam sem a colina. Ao menos é essa a ideia popularizada em fóruns informais que discutem nootrópicos.

Isso nasceu das observações de que o piracetam aumenta a acetilcolina - mas isso foi visto só em alguns estudos em animais. E, então, lançaram a seguinte teoria: a colina reforçaria os estoque de acetilcolina, enquanto o piracetam cuidaria de liberar e esse neurotransmissor superimportante nas sinapses [16].

E essa teoria se confirma?
Um estudo animais veio pra colocar essa teoria à prova. Em camundongos "idosos", a combinação de piracetam e colina foi “várias vezes melhor” para a memória que o piracetam sozinho [17]. Segundo os autores:
"Os resultados desses estudos demonstram que os efeitos de se combinar colina e piracetam são bem diferentes daqueles obtidos com qualquer uma das drogas isoladamente (...)". [17]
Novamente, contudo, não sabemos se as observações de aumento de acetilcolina se aplicam a humanos. E o uso de piracetam com colina não foi estudado em pessoas saudáveis, para verificar se o uso dos dois juntos tem efeito superior ao piracetam. 

Então, não há comprovação da eficácia dessa combinação para fins de melhorar o desempenho cognitivo de pessoas saudáveis, somente especulações.

Efeitos colaterais do piracetam
Segundo a bula do Nootropil (piracetam), em pacientes com distúrbios cognitivos, "o piracetam foi extremamente bem tolerado em dosagens variando entre 2,4 a 4,8 g/dia, sendo praticamente isento de efeitos colaterais." 

Ainda conforme a bula, os seguintes efeitos colaterais ocorreram em estudos: hipercinesia, aumento de peso, nervosismo, depressão, sonolência e astenia. A bula cita ainda contraindicações de uso e interações com outros medicamentos. Por conta disso, o piracetam deve ser prescrito por um médico, e seu uso deve ser acompanhado por esse profissional.

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