Do Exército brasileiro ao Tour de France...
23 de junho - um dia após desconstruir Bettendorff. A emancipação intelectual gerou energia imediata: se as autoridades são inadequadas, vou buscar evidências em primeira mão.
Este é o texto onde saio do laboratório e vou para o mundo real. Aqui aparecem os personagens mais memoráveis da série: dependentes químicos em recuperação, militares brasileiros com conhecimento misterioso, ciclistas profissionais no Tour de France, primatas com eletrodos na cabeça. É onde a sulbutiamina encontra a vida humana em toda sua estranheza.
Narrativamente, é o meu favorito até aqui. A linguagem fica mais solta, o humor mais evidente, as histórias mais envolventes. Psicologicamente, é libertação total - posso explorar qualquer direção que pareça interessante. Resultado: descobri que a sulbutiamina tem uma biografia mais bizarra que maioria das pessoas.
Se você vai ler apenas um texto da série, que seja este.
— M.P.
Strength in unity
Summary
Sulbutiamina classificada como psicoanaléptico em 1978, atuando como neurotônico que melhora funções cognitivas superiores sem hiperestimulação típica de estimulantes clássicos.
Estudos em ratos mostraram melhora significativa na aprendizagem e memória, especialmente em condições de estresse metabólico, sugerindo efeitos cognitivos genuínos.
Ensaios clínicos humanos indicaram eficácia em dependentes químicos pós-abstinência, idosos com declínio cognitivo e adultos com fadiga psíquica, com melhora em vigilância, humor e memória.
Pesquisa em primatas revelou facilitação da vigília e reorganização do sono sem efeitos tóxicos, indicando otimização da função neural sem estimular excessivamente.
Estudo em camundongos associou sulbutiamina à melhora da consolidação da memória de longo prazo, possivelmente via modulação do sistema colinérgico hipocampal, embora com limitações metodológicas.
Pesquisa brasileira de 1985 destacou uso da sulbutiamina para melhorar desempenho físico e mental em atletas militares, antecipando conceitos modernos de enhancement cognitivo.
Relato do uso no Tour de France de 1990 indicou aplicação prática da sulbutiamina como recurso ergogênico lícito, apesar da fragilidade metodológica dos dados.
Sulbutiamina permanece uma substância multifacetada, com perfil entre suplemento, medicamento e nootrópico, valorizada por sua tolerabilidade e efeitos específicos na fadiga mental e recuperação.
A sulbutiamina na prática
Emerge um composto com propriedades psicoanalépticas
Em 1978, Jacques Servier deposita uma patente (4071629) que enquadra formalmente a sulbutiamina pela primeira vez na história clínica moderna como um agente com propriedades "psicoanalépticas" [1].
Aqui, cabe conceituar bem essa categoria em que a sulbutiamina está sendo encaixada. "Psicoanalépticos" é um conceito clássico da farmacologia europeia. São compostos que atuam como revigorantes da mente - elegantemente otimizam as funções cognitivas superiores. Pense como "neurotônicos": restauram o tônus psíquico de forma progressiva, sustentável e sem hiperestimulação. Age elevando o drive mental, a prontidão, o ânimo, mas sem produzir a excitação ansiosa típica das anfetaminas ou cafeína em doses altas.
Diferente dos psicoestimulantes clássicos, os psicoanalépticos são mais refinados. Não causam estimulação geral, mas atuam de maneira seletiva nas funções cognitivas superiores - especialmente sobre as funções psíquicas superiores como atenção, vigília, humor, motivação e energia mental, como uma nutrição pro cérebro.
Até então, pelo que conta a patente, a sulbutiamina era empregada em doses de 5 a 50 mg para combater os efeitos tóxicos da avitaminose B1. "Vitaberin é um composto antigo, já descrito na literatura". Era esse o nome da vitamina. Mas Servier clama uma descoberta: propriedades farmacológicas "surpreendentes" emergem em doses mais elevadas - deixa de ser uma vitamina, passa a funcionar como um nootrópico com propriedades analépticas. A sulbutiamina passa a ser encarada como um medicamento para "distúrbios psiquícos, alterações do comportamento, redução da vigilância e enfraquecimento do tônus psiquíco e intelectual", com doses sugeridas especialmente entre 400 a 1200 mg por dia -- admitindo até 1500 mg/dia; que são maiores dos que os atualmente empregados.
Ratos esfomeados e inteligentes
Para sustentar essa reivindicação de propriedades psicoanalépticas, Servier apresenta na patente dados experimentais que, pelos padrões da época, eram metodologicamente sólidos e cientificamente relevantes.
O experimento mais significativo utilizou um modelo de labirinto em ratos — protocolo padrão para avaliar aprendizagem e memória. Ratos em jejum de 48 horas navegavam por corredores até encontrar alimento, realizando cinco percursos por sessão com intervalos de 10 minutos. Os pesquisadores mediam tempo de execução, número de erros e taxa de falhas.
Os resultados foram estatisticamente significativos e consistentes: enquanto ratos controle apresentaram deterioração natural da performance (tempo aumentando de 46,7s para 65,7s ao longo de 10 dias), animais tratados com sulbutiamina 30 mg/kg pordia mantiveram performance superior e eliminaram completamente os testes negativos (0% versus 26,75% nos controles, P=0,05).
O achado mais notável veio nos testes de recuperação de memória após 15 dias sem reforço. A sulbutiamina não apenas restaurou habilidades deterioradas, mas acelerou significativamente a reaprendizagem — um efeito que transcende simples correção vitamínica.
Interpretação e limitações: Este experimento forneceu a primeira evidência controlada de que a sulbutiamina possui efeitos cognitivos genuínos em doses farmacológicas. Contudo, é importante contextualizar: o modelo utilizava estresse metabólico severo (jejum prolongado), o que pode confundir efeitos puramente cognitivos com efeitos energético-motivacionais. Pelos padrões metodológicos atuais, faltavam controles farmacológicos mais refinados e análises neuroquímicas.
Ainda assim, os dados estabeleceram precedente científico válido para reclassificar a sulbutiamina como agente psicoanaléptico, fornecendo base experimental que seria posteriormente validada em estudos clínicos humanos descritos na mesma patente.
Experimentos clínicos
Os estudos clínicos humanos descritos na patente revelam um perfil terapêutico ainda mais fascinante. Servier testou a sulbutiamina em quatro populações estratégicas, cada uma revelando aspectos únicos de sua ação psicoanaléptica.
Sulbutiamina reduz o sofrimento psíquico de dependentes químicos
O achado mais surpreendente veio do Estudo A, com 70 dependentes químicos, com média de idade de 24,7 anos, recém-saídos da desintoxicação. Esta é uma população notoriamente desafiadora. São pacientes que se apresentam em estado de psicastenia grave, típica do pós-abstinência: estados depressivos, insônia, apatia, angústia, alto risco de recaída.
Essa é uma população particularmente difícil. São pacientes com que sofrem com:
✔️ Astenia avassaladora
✔️ Depressão anérgica
✔️ Insônia refratária
✔️ Anedonia completa
✔️ Redução da vigilância, embotamento, lentificação, apatia
✔️ Altíssimo risco de recaída — porque a recaída é muitas vezes uma tentativa de remediar esse estado psíquico insuportável.
Os resultados são expressivos:
82% de melhora nos quadros de psicastenia pós-abstinência
80% de melhora nos distúrbios de vigilância induzidos por tranquilizantes
68,4% de melhora em estados depressivos após privação
Era como se a substância restaurasse especificamente os circuitos neurais deteriorados pelo uso crônico de drogas.
Isso é notável porque:
Estamos falando de uma síndrome clínica robusta, altamente incapacitante, e a sulbutiamina mostrou efeitos consistentes na reconstituição do tônus psíquico e vigilância, sem ser um estimulante clássico, o que é clinicamente ouro nesse perfil de pacientes.
É uma prova de conceito importante. A farmacologia da sulbutiamina está sendo testada no ambiente neurobiológico mais devastado possível — e passando no teste.
Igualmente notável foi o Estudo D com 46 idosos de idade média 83 anos. Utilizando doses padronizadas de 600mg diários por 4-10 semanas, os pesquisadores aplicaram testes psicométricos objetivos (Wechsler-Bellevue) antes e depois do tratamento. Os resultados foram clinicamente significativos: 37 dos 46 pacientes apresentaram melhoria mensurável em memória (86% de eficácia), atenção (84%) e vigilância (82%). Em uma população onde o declínio cognitivo é esperado e irreversível, a sulbutiamina demonstrava efeitos neuroprotetores genuínos.
O Estudo C, com 80 adultos com psicastenia de diferentes origens, demonstrou eficácia de 64% em doses de 400-800mg diários por 4 semanas. Embora menos específico, validou o uso da sulbutiamina em "astenias reacionais" — fadiga psíquica decorrente de estresse emocional ou sobrecarga — uma indicação que ressoa fortemente com demandas cognitivas modernas. Esse grupo é particularmente relevante porque corresponde diretamente ao tipo de paciente que aparece no consultório atual: fadiga crônica, quadros depressivos leves, neurose ansiosa com comprometimento do funcionamento executivo.
Facilitação da vigília em primatas
Análise do Estudo sobre Sulbutiamina em Primatas Macaca mulatta
Visão Geral do Estudo
Em 1982, Emmanuel Balzamo e Ghislaine Vuillon-Cacciuttolo, estudaram os efeitos da sulbutiamina (Arcalion) nos estados de vigilância de primatas não-humanos [2].
Utilizando 6 macacos rhesus (Macaca mulatta) implantados com eletrodos para monitoramento eletroencefalográfico contínuo, os pesquisadores conseguiram mapear objetivamente os efeitos da sulbutiamina no cérebro. A sulbutiamina foi administrada na dose de 300 mg/kg/dia por via oral durante 10 dias consecutivos.
As doses eram deliberadamente supraterapêuticas — até 10 vezes superiores às utilizadas clinicamente — para detectar qualquer alteração neurobiológica sutil.
Os resultados confirmaram objetivamente as propriedades psicoanalépticas. A partir do 5º dia, a sulbutiamina induziu alterações específicas e reproduzíveis no córtex cerebral: aumento dos ritmos rápidos beta (>28Hz) durante a vigília, facilitação do estado de alerta e reorganização inteligente do sono. O sono REM permaneceu intacto, mas o sono lento foi otimizado — menos tempo nos estágios superficiais, transição mais eficiente para estágios profundos.
Esse padrão sugere um deslocamento do cérebro para um estado de hiperalerta basal, mas sem características disruptivas extremas. É como se a homeostase de base fosse elevada, aumentando o "tônus de vigília" sem abolir a arquitetura fundamental do sono.
A cinética dos efeitos fala a favor de efeitos estruturais, não agudos: aparecimento entre 4-5 dias, máximo no 10º dia, persistência por 2-5 dias após suspensão. Para os autores, esta dinâmica temporal sugere que a sulbutiamina não produz efeitos farmacológicos diretos - ou seja, sem ações brutas como as de um psicoestimulante tradicional como anfetaminas. Faria, sim, reajustes adaptativos nos sistemas regulatórios cerebrais.
Crucialmente, mesmo em doses massivas, a tolerabilidade foi excelente: apenas hipersalivação transitória em dois animais. Comportamento, motricidade e interação social permaneceram normais. Isso confirmou que a sulbutiamina otimiza função neural sem toxicidade — uma característica fundamental que a diferencia de estimulantes convencionais.
Esse é um dos estudos em animais mais importantes sobre a sulbutiamina. A metodologia é robusta: primatas (algo translacional para humanos), com medidas objetivas com EEG contínuo, demonstrando efeitos clínicos nos ritmos do ciclo sono-vigília. Os achados sugerem que ela otimiza a eficiência neural - facilita vigília quando necessário, mas preserva e até melhora a qualidade do sono.
Camundongos com melhor formação de memórias de longo-prazo... E com sistema colinérgico à todo vapor
Em 1985, Micheau e colaboradores, da Universidade de Bordeaux, produziram um dos marcos da literatura sobre a sulbutiamina. Num estudo em animais, eles amarram efeitos bioquímicos detectáveis da sulbutiamina na neuroquímica cerebral a um desfecho comportamental mensurável: a melhora da consolidação da memória de longo prazo [3]. É um estudo inaugural, com metodologia simples - com alguns problemas, mas válido mesmo assim.
Nesse estudo muito citado, camundongos aprenderam uma tarefa operante (pressionar alavanca por comida) em sessão única, sendo retestados 24 horas depois. Animais que receberam sulbutiamina (300 mg/kg, via gavagem, por 10 dias) não apresentaram diferença na velocidade de aprendizagem durante a aquisição da tarefa, mas demonstraram desempenho significativamente superior 24 horas depois, no teste de retenção. Isso caracteriza um efeito clássico sobre a consolidação da memória, e não sobre aprendizagem em si.
Paralelamente, análises neuroquímicas revelaram aumento de 10% na captação de colina hipocampal sódio-dependente — primeira evidência direta de que a sulbutiamina modula o sistema colinérgico cerebral. Os autores propuseram um mecanismo plausível: tiamina → acetil-CoA → síntese de acetilcolina. Poderia haver uma melhora na capacidade de sustentar liberações de acetilcolina sob estresse -- o que melhoraria a formação e consolidação de memórias -- o que justificaria maior captação.
A relação entre melhora na retenção e incremento na atividade colinérgica é plausível, sustentada pela literatura que conecta disfunção colinérgica a quadros de déficit de memória (inclusive em encefalopatias por deficiência de tiamina).
Porém, há limitações metodológicas importante. Os autores empregaram gavagem forçada: procedimento que gera estresse crônico relevante nos animais. Inclusive, os autores relatam que o grupo placebo (tratado apenas com goma arábica) apresentou piora da retenção em relação ao grupo controle absoluto (não tratado), o que eles mesmos atribuem ao estresse da gavagem, e não à goma.
Isso levanta um ponto crítico: a melhora vista no grupo sulbutiamina pode não ser puramente um efeito de melhora cognitiva per se, mas também de uma mitigação dos efeitos negativos do estresse crônico da gavagem. Em outras palavras, parte do efeito pode ser antagonismo do impacto do estresse sobre memória, algo que, ainda assim, é clinicamente relevante — sobretudo em populações fatigadas, ansiosas ou fragilizadas.
O artigo não descreve de forma suficiente a caracterização farmacológica da sulbutiamina. As doses também são extremas para um camundongo: 300mg/kg/dia é dose massiva (equivale a ~20g/dia para humano de 70kg). Muito acima de qualquer uso terapêutico.
Ainda assim, este estudo estabeleceu dois achados fundamentais: em camundongos, a sulbutiamina facilita especificamente a consolidação de memória sem afetar aquisição, e possivelmente o faz através de modulação do sistema colinérgico hipocampal.
🪖✨ Sulbutiamina no Brasil. Para otimização ergogênica e cognitiva farmacológica.
Um achado pitoresco: o "easter egg" brasileiro
Paralelamente ao desenvolvimento científico europeu, emerge um documento histórico peculiar e revelador em 1985: um estudo brasileiro conduzido por Paulo Roberto Pacheco na Escola de Educação Física do Exército, intitulado "Efeitos da Sulbutiamina (Arcalion) sobre a fadiga física e psíquica nos atletas" [4].
Este trabalho representa uma anomalia fascinante na literatura científica — um "experimento fantasma" que aparece isolado na história da pesquisa brasileira, sugere redes de conhecimento sofisticadas, e depois desaparece sem deixar rastros de continuidade.
O autor apresentava conhecimento neurobiológico surpreendentemente sofisticado para 1985, especificando que a sulbutiamina atua em "três estruturas do Sistema Nervoso Central: o Sistema Límbico e em particular o Hipocampo, as células de Purkinje no cerebelo e a formação reticular no tronco cerebral". Distinguia precisamente que sua ação era "desprovida de efeitos de tipo excitante" -- que coaduna com a visão de "psicoanaléptico" em voga na época.
É uma descrição rigorosa, surpreendentemente alinhada com o que os próprios estudos farmacológicos franceses da época apresentavam. E que, como vamos explorar mais tarde, contrariam totalmente a ideia de Bettendorff de que não há evidências de que a sulbutiamina chegue ao cérebro.
O verdadeiro mistério reside nas redes científicas implícitas. Como um pesquisador militar brasileiro teve acesso a literatura neurobiológica tão avançada? As referências citam estudos franceses dos anos 70-80 que permanecem arqueologicamente inacessíveis: "Ensaios clínicos sobre astenia orgânica", "Relatório sobre atividade anti-astênica", "Interesse terapêutico do Arcalion em meio esportivo". Isso demonstra que o Exército Brasileiro, via seu setor médico-desportivo, estava absolutamente conectado com as fontes técnicas primárias da neurofarmacologia francesa da época.
O estudo avalia o efeito da sulbutiamina em atletas.
É isso que torna este episódio ainda mais extraordinário. Ele figura, muito provavelmente, como um dos primeiros registros do uso de sulbutiamina no contexto explícito de enhancement de pessoas saudáveis — fora do domínio terapêutico clássico de astenia funcional. Na prática, trata-se de uma investigação sobre como otimizar não apenas a recuperação, mas também o desempenho físico e mental de atletas militares, dentro de uma lógica absolutamente alinhada com o conceito contemporâneo de cognitive enhancement ou performance pharmacology, embora essas expressões sequer existissem no vocabulário da época.
O estudo em si foi metodologicamente simples mas historicamente significativo: atletas militares receberam 400mg diários de sulbutiamina por 90 dias, sendo avaliados através de questionários subjetivos e testes físicos objetivos. Os resultados foram notavelmente consistentes com os achados europeus: 83% reportaram melhoria em memória e rendimento intelectual, 75% em concentração e motivação, 66% em ansiedade, com tolerância excelente.
O próprio pesquisador reconheceu a natureza preliminar de seus achados, observando que "individualmente há diferenças de performance importantes" — um insight sobre variabilidade individual que antecipava décadas de pesquisa em farmacogenética. Solicitava estudos controlados posteriores que, curiosamente, nunca foram realizados.
Curiosamente, o artigo documenta, com riqueza quase documental, fotografias dos testes de campo — cenas de soldados alinhados, testes de força isométrica e avaliações de esforço, compondo quase uma cápsula temporal que revela não só um estudo, mas também uma estética militar da Medicina da época.
Era a primeira demonstração clara de que a substância poderia ser usada não para tratar doenças, mas para melhorar capacidades normais — um conceito que só se tornaria amplamente aceito décadas depois. Os resultados são consistentes na direção de uma percepção subjetiva clara de melhora. Na tabela de avaliação qualitativa, mais de 60% dos atletas relatam melhora relevante em memória, motivação, rendimento físico e redução de cansaço. Os efeitos reportados podem refletir uma combinação de benefícios genuínos e expectativa, sendo impossível determinar a contribuição relativa de cada componente sem estudos controlados adequados.
Sulbutiamina chega ao Tour de France: recurso ergogênico lícito
Neste ponto da narrativa, o leitor atento já deve ter percebido que a história da sulbutiamina segue uma lógica própria e ligeiramente surrealista — uma sequência de episódios onde o improvável se torna rotineiro e o científico convencional brilha pela ausência. Assim, quando deparamos com uma publicação de 1991 no Journal International de Médecine descrevendo o uso de Arcalion no Tour de France de 1990, já não nos chega como surpresa.
Sim, o Tour de France — a mais célebre e brutal prova de ciclismo do planeta. Um grupo de ciclistas profissionais foi submetido a um pequeno experimento com Arcalion® (sulbutiamina) como recurso para suporte energético e cognitivo durante a competição.
O estudo — se é que podemos chamá-lo assim — é um misto de relatório médico, nota de rodapé histórica e panfleto farmacêutico. G. Nicolet reporta — em formato que oscila elegantemente entre comunicação científica e material promocional — a experiência com 30 ciclistas durante a competição mais exigente do planeta. Só isso. Sem grupo controle, sem delineamento claro, sem métricas objetivas.
Os resultados seguem o padrão já familiar: "70% de melhoria" na recuperação, tolerabilidade excelente, efeitos específicos na fadiga mental. O que torna este documento fascinante não são os achados — metodologicamente indefensáveis — mas o que ele revela sobre redes científicas informais. Médicos do Tour de France, evidentemente, consideravam a sulbutiamina valiosa o suficiente para uso sistemático na competição ciclística mais prestigiosa do mundo.
A sulbutiamina parece ser vítima perpétua de circunstâncias extraordinárias — sempre no lugar onde a ciência encontra a aventura, onde o protocolo encontra a improvisação, onde o convencional vai morrer. É uma substância permanentemente flutuando na fronteira borrada entre suplemento, medicamento, nootrópico, estimulante, remédio e talvez até amuleto bioquímico.
Aliás, se há uma constante em sua história, é essa: a dificuldade em definir exatamente o que ela é e pra que ela serve, que nunca impediu ninguém de tentar usá-la — seja em estudantes, idosos, soldados, alcoólatras em abstinência ou atletas do Tour de France. Talvez isso reflita a natureza pleiotrópica da própria substância - ao não agir num alvo molecular específico (como um receptor), mas essencialmente aumentar os níveis neuronais de uma substância obscura, com uma multiplicidade de funções: a tiamina trifosfato.
O Que Dá Para Afirmar (Com Alguma Honestidade Intelectual)
Três aspectos tornam este documento particularmente significativo. Primeiro, demonstra tolerabilidade excepcional em condições impossíveis de replicar — três semanas de esforço máximo, calor extremo, privação de sono. Segundo, os efeitos reportados são específicos para fadiga mental e recuperação, consistentes com o perfil psicoanaléptico. Terceiro, revela que médicos esportivos franceses consideravam a substância suficientemente valiosa para uso sistemático na competição mais prestigiosa do mundo.
Apesar da fragilidade metodológica, o episódio do Tour não é irrelevante. Primeiro, porque confirma o enquadramento cultural da sulbutiamina naquela época: não era vista como doping pesado, mas como uma espécie de biohack aceitável, algo entre café gourmet e ritalina de boutique. Segundo, porque reforça, ao lado do artigo tupiniquim, sua inserção precoce na lógica do enhancement cognitivo e físico em indivíduos saudáveis, muito antes de isso se tornar um debate bioético formal.
No final, o "estudo" do Tour de France é exatamente o que esperaríamos da sulbutiamina: metodologicamente inadequado, historicamente fascinante, contextualmente revelador, e ligeiramente impossível de ignorar. É mais um tijolo na construção de uma narrativa que desafia categorização — parte ciência, parte marketing, parte antropologia, parte ficção científica bem documentada.
Essa publicação também faz referência a vários estudos científicos não rastreáveis e não indexados em bases de dados - ou seja, aos quais não temos acesso direto - que compõem uma literatura cinzenta sobre a sulbutiamina.
[1] Novel pharmaceutical compositions and method for treating psychasthenia. Servier, J. (1978). (U.S. Patent No. 4,071,629). United States Patent and Trademark Office. https://patents.google.com/patent/US4071629A/en
[2] Facilitation de l’état de veille d’un traitement semi-chronique par la sulbutiamine (Arcalion) chez Macaca mulatta. Balzamo, E., & Vuillon-Cacciuttolo, G. Revue d'Electroencéphalographie et de Neurophysiologie Clinique, 1982, 12(4), 373–378. https://doi.org/10.1016/S0370-4475(82)80029-4
[3] Administração crônica de sulbutiamina facilita a formação de memória de longo prazo em camundongos: possível mediação colinérgica.
Micheau, J., Durkin, T. P., Destrade, C., Rolland, Y., & Jaffard, R. (1985). Pharmacology Biochemistry and Behavior, 23(2), 195–198. https://doi.org/10.1016/0091-3057(85)90555-6
[4] Efeitos da sulbutiamina (Arcalion) sobre a fadiga física e psíquica nos atletas. Pacheco, P. R. (1985). Revista de Educação Física do Exército, (115), 15–19.
Nenhum comentário:
Postar um comentário