Onde tudo começou
Este primeiro texto me pega ainda respeitoso, quase reverente diante da autoridade científica. Eu estava genuinamente tentando entender Bettendorff - o maior especialista mundial em derivados de tiamina. Achava que o problema era meu: "Deve ter algo que não estou vendo." O tom é cauteloso, cheio de "talvez" e "pode ser". Ainda estou tentando encaixar as peças dentro do framework dele.
O que não sabia era que as contradições que me incomodavam não eram falhas na minha compreensão - eram falhas reais na literatura. Este texto documenta o momento exato onde a inquietação intelectual nasce. Leiam como um detetive tentando ser educado com o principal suspeito.
Molecular protection
Imagem por Mindsera
Revisão de literatura sobre sulbutiamina, destacando seu papel como pró-fármaco da tiamina e seu impacto nos níveis cerebrais de tiamina e derivados, especialmente tiamina trifosfato (ThTP).
Exploração do papel clássico da tiamina como coenzima no metabolismo energético e das funções não-coenzimáticas menos compreendidas, como sinalização celular e modulação da liberação de neurotransmissores.
Discussão sobre a controvérsia na literatura quanto à capacidade da sulbutiamina de atravessar a barreira hematoencefálica e aumentar efetivamente os níveis cerebrais de tiamina, com evidências contraditórias do próprio Bettendorff.
Comparação entre sulbutiamina e benfotiamina, destacando diferenças estruturais e farmacológicas que explicam a eficácia central da sulbutiamina versus a ação periférica da benfotiamina.
Hipótese de que a sulbutiamina atua por múltiplas vias: penetração parcial na barreira hematoencefálica, conversão local em tiamina e derivados, e geração de metabólitos tiolados com propriedades neuroprotetoras e antioxidantes.
Identificação de proteínas ligantes de tiamina em sinapses que podem funcionar como receptores modulando a liberação de neurotransmissores, sugerindo mecanismos sinápticos para os efeitos da sulbutiamina.
Reflexão sobre a importância das contradições científicas para aprofundar o entendimento e corrigir dogmas, valorizando a tolerância à incerteza e o amadurecimento no letramento científico.
Consideração do potencial terapêutico da sulbutiamina e da tiamina em doenças neuropsiquiátricas, com reconhecimento da necessidade de mais estudos para validar os efeitos pleiotrópicos observados.
Estou revisando alguns artigos para, por hobby, aprender e entender mais sobre a sulbutiamina, uma molécula que me fascina - e que eu sinto que nunca a entendi por completo. Há algo em seu mecanismo que... Me escapa! A literatura é esparsa. E é algo amplamente usado como nootrópico e psicoestimulante. Sua eficácia também - até que ponto é confiável?
Como ponto de partida, eu decidi ler o artigo: "Bettendorff L, Wins P. Biological functions of thiamine derivatives: Focus on non-coenzyme roles. OA Biochemistry 2013 May 01;1(1):10." Esse artigo não fala sobre a sulbutiamina em específico. Mas ele aborda de forma abrangente a tiamina e seus derivados. Como a sulbutiamina é um dímero de tiamina - e, em seu metabolismo, gera tiamina e aumenta seus níveis, bem como dos ésteres de fosfato de tiamina -- entender as funções desses se tornou mister e importante. O mecanismo de ação da sulbutiamina inevitavelmente passa através de causar níveis suprafisiológicos de tiamina no tecido nervoso.
A função mais clássica da tiamina e da tiamina difosfato é o seu papel no metabolismo oxidativo de glicose, servindo de coenzima. Isso por si só é relevante - nós precisamos dela para produzir energia. Acho improvável que o usuário comum, porém, tenha níveis tão comprometidos de tiamina a ponto de que a sulbutiamina faça diferença aqui - mas é possível. Talvez trazendo a eficiência mitocondrial de geração de ATP para mais próximo do seu teto.
Contudo, a tiamina e seus derivados exercem outros papéis obscuros - que podem ser relevantes para a compreensão da sulbutiamina, em última análise. O artigo é assinado por Bettendorff - um louco, no melhor sentido, que há 30 anos estuda obsessivamente na Bélgica a tiamina, com foco especial nos seus derivados mais "exóticos". Ele crava que "ThTP is a particularly intriguing molecule". Trata-se da tiamina trifosfato, essa ThTP. Esse é um derivado - que sabidamente também é aumentado no cérebro após a administração de sulbutiamina - que compreendemos menos. É conservado entre espécies - das bactérias aos humanos. Não participa de reações enzimáticas. Parece atuar sinalizando escassez: déficit de aminoácidos, estresse metabólico. Um mensageiro que soaria um alarme para a célula se adaptar - e entrar num estado de exceção - quando se acumula nas mitocôndrias, no caso de células humanas. Essa é uma hipótese. Se isso for verdadeiro, uma especulação é a de que a sulbutiamina - considerando que ela aumente os níveis mitocondriais de ThTP - acionaria vias de resposta ao estresse nas células. As respostas são um tanto obscuras - mas será que podem ser adaptativas em doenças neuropsiquiátricas? Por exemplo, ajudando neurônios acessarem "reservas funcionais" que os forcem a funcionar melhor. Aqui, entramos quase na ficção científica - com alguma frágil plausibilidade.
Um caso mais forte é que a tiamina e a ThTP estão envolvidas na liberação de neurotransmissores. Bettendorff é categórico aqui. Identificaram receptores para tiamina nas sinapses - em vesículas sinápticas, por exemplo. Isso é... Intrigante. Termos receptores para tiamina indica que ela funciona como mensageira. Esses receptores, quando ativados, parecem facilitar a liberação de ao menos dopamina, noradrenalina e acetilcolina. De novo, aqui: a sulbutiamina, ao provocar níveis suprafisiológicos de tiamina, iria ativar esses receptores em nível maior. E aumentar a transmissão de aminas e acetilcolina. É uma base mecanística sofisticada para explicar efeitos tão amplos dela na cognição e humor.
Nós sabemos que a sulbutiamina está fazendo algo. Eu ainda não revisitei os estudos específicos sobre elas - mas eu lembro que tem um pouco de tudo. Modulação de receptores de dopamina e glutamato, alterações nos níveis de DOPAC, modulação de acetilcolina... Há estudos em Alzheimer, esclerose múltipla, pacientes deprimidos, astenia, recuperação pós-infecciosa. São efeitos pleotrópicos. Resta ver a qualidade desses estudos, também. O Arcalion - medicamento à base de sulbutiamina - é usado há décadas.
Por ora, o que eu vi é essa revisão do Bettendorff. Até mesmo brincava com o ChatGPT que o cara, que no ResearchGate diz que "eu estou interessado em todos os aspectos da tiamina" é quase um... tiaminólogo. Ele se ultraespecializou... em vitamina B1. Um grão de areia numa praia. Que ele estuda obsessivamente há 30 anos, tendo descoberto que existe uma ThTPase -enzima que cliva o ThTP (seu ídolo), e moléculas de adenina com tiamina-trifosfato. "Bettendorff, o que acha do ácido fólico?" "Eu já disse: EU SÓ SEI SOBRE TIAMINA. TI-A-MI-NA" rs.
Junto com o Claude, Perplexity e ChatGPT (curioso, usei 3 IAs - para escrever numa quarta, o Perplexity!) - esmiucei o artigo. Bettendorff escorrega em ao menos uma parte: diz que sulbutiamina e benfotiamina - e todos os derivados farmacêuticos de tiamina - atuam genericamente para aumentar os níveis de tiamina no sangue, sem distinção; e que a tiamina tem transporte limitado para o cérebro por conta de proteínas na barreira hematoencefálica; e que: essas moléculas nem chegam ao cérebro, nem causam aumento de tiamina no cérebro. O que é falso. Como demonstrarei:
1) Sulbutiamina e benfotiamina tem perfis bem diferentes; então - elas precisam agir diferente!
2) O próprio Bettendorff - e essa é uma parte desconcertante - fez um estudo em 1990 inteiro sobre aumentos dos níveis de tiamina trifosfato em ratos (no cérebro) após administração de tiamina.
3) E o próprio autor segue trazendo evidências dos efeitos da tiamina em megadoses ou de seus derivados farmacêuticos em doenças neurodegenerativas. Quase como se dissesse: "olhem, essa pomada! Não temos evidência de que ela atua na pele E ela é muito eficaz em dermatites".
Bom, o que segue abaixo é mais um fluxo de pensamento com base no artigo - sem muito compromisso em legibilidade, é mais para registro... Ainda não sei o que farei disso tudo. Talvez escrever um capítulo sobre sulbutiamina (?). Mas me parece que esses detalhes minúsculos podem não ser interessantes para quase ninguém rs. Mas vamos lá. Conhecimento é válido.:
A vitamina B1 é fundamental para todos os organismos. O motivo principal? A sua forma difosforilada - tiamina difosfato - serve de coenzima para complexos enzimáticos mitocondriais. Resultado? Deficiência de tiamina = menor metabolismo oxidativo = morte celular, eventualmente. Nos animais, o cérebro é o órgão mais "vampiresco" - que usa mais oxigênio e glicose -- portanto, os neurônios são as células mais sensíveis à deficiência de tiamina. Isso tem repercussões clínicas. Beriberi, uma condição polineurítica; e síndrome de Wernicke-Korsakoff em etilistas, em que ocorrem lesões cerebrais dieencefálicas seletivas.
Embora a tiamina difosfato seja a mais "famosa", existem várias outras formas fosforiladas e adeniladas de tiamina - a monofosfato (ThMP), trifosfato (ThTP) e até mesmo adenosina tiamina trifosfato e adenosina tiamina difosfato (ufa!). Se existem, é porque devem ter alguma função. É um pouco obscuro porque a natureza escolheu a tiamina difosfato para ser a coenzima - as propriedades catalíticas da tiamina não são influenciadas pelos grupos fosfatos. Ou seja, ThMP e ThTP serviriam.
Bettendorff especula em 2013 que a tiamina e seus derivados teriam um papel não-coenzimático -- especialmente relacionado à formação nervosa. É algo que ele já vinha estudando há 20 anos.
Um pouco de bioquímica
Tiamina entra nas células por transportes específicas.
É imediatamente fosforilada em ThDP por meio de uma pirofosfoquinase citosólica.
E, daí, ela pode ainda ser fosforilada em ThTP ou aqueles derivados adenilados.
Mas o "destino" mais comum da ThDP é ser hidrolisada em ThMP, que é então recilcado em tiamina. As enzimas que fazem isso não foram identificadas.
"Uma molécula particularmente intrigante"
É nesses termos que Bettendorff declara-se sobre o amor da sua vida - tiamina trifosfato (ThTP), molécula que ele vem estudando há décadas. "É o único composto trifosforilado que não é um nucleotídeo", afirma, extasiado.
A grande questão da tiamina trifosfato é a seguinte, que o GPT expressou bem, ao pensar junto comigo:
Sim — a ThTP (tiamina trifosfato) tem duas ligações fosfoanidrido, como o ATP, o que a torna uma molécula "rica em energia" e capaz de doar fosfato para proteínas.
É uma espécie de “ATP da tiamina”, com potencial para fosforilar alvos — embora ainda não se saiba se isso acontece de forma significativa in vivo (ou seja, se tem um papel fisiológico concreto, ou é só algo que conseguimos demonstrar experimentalmente
Em bactérias E. coli, (itálico para Lineu não brigar comigo rs), a ThTP se acumula na ausência de aminoácidos. O ThTP poderia funcionar como um sinalizador celular de escassez — atuando como uma espécie de "mensageiro da fome" que ajuda a célula a se adaptar à privação. Ou seja, ele avisa: "é hora de mudar a estratégia" - e a célula entra em estado de exceção. É uma hipótese.
Há duas formas de produzir ThTP.
1. Via Adenilato Quinase (AK1) - no citosol:
Reação: ThDP + ADP → ThTP + AMP
Acontece o tempo todo ("constitutiva")
Bettendorff chama de "side-reaction" -um efeito colateral, quase acidental.
2. Via FoF1-ATP sintase - na mitocôndria:
Reação: ThDP + Pi → ThTP
Só acontece em condições metabólicas específicas ("strongly dependent on metabolic conditions")
Ou seja. Ambas as vias acontecem, mas em condições diferentes:
A via da AK1 parece ser constitutiva, funcionando o tempo todo como um subproduto metabólico.
Já a via da FoF₁-ATP sintase é regulada por condições energéticas
Embora não haja uma enzima “dedicada” à produção de ThTP, os mamíferos possuem uma enzima altamente específica para destruí-lo: a ThTPase de 25 kDa, presente no citoplasma de células adultas e diferenciadas.
Essa enzima pode funcionar como um "sistema de reparo", degradando ThTP que teria sido produzido acidentalmente. No entanto, em animais como frangos, peixes e porcos, essa ThTPase é ausente ou pouco ativa — e mesmo assim, o ThTP se acumula sem causar toxicidade, podendo até ultrapassar os níveis da forma coenzimática (ThDP) nos músculos e em órgãos elétricos.
Onde exatamente a ThTP está sendo produzida importa mais do que quanto está sendo produzida.
ThTP citosólica (via AK1) seria, essencialmente, "lixo metabólico elegante" - um subproduto da atividade constitutiva da adenilato quinase que só se acumula quando a ThTPase está sobrecarregada ou ausente.
ThTP mitocondrial (via ATP sintase), por outro lado, seria o verdadeiro "sinal de emergência metabólica" - produzida apenas quando a maquinaria energética celular está sob condições específicas de estresse.
Entra a sulbutiamina
É aqui que a sulbutiamina entra em cena de forma intrigante. Esta molécula sintética - essencialmente duas moléculas de tiamina ligadas por uma ponte dissulfeto - foi desenvolvida para contornar as limitações de transporte da tiamina através de membranas celulares. Ao elevar dramaticamente as reservas intracelulares livres de tiamina, a sulbutiamina aumenta os níveis de ThTP nos tecidos nervosos.
Mas a pergunta de um milhão de dólares permanece: a sulbutiamina está entupindo a "lixeira" citosólica ou hackeando a "sirene" mitocondrial?
Se for o primeiro caso, estaríamos lidando com um fenômeno bioquímico relativamente trivial. Mas se for o segundo - se a sulbutiamina estiver forçando a ATP sintase mitocondrial a produzir ThTP mesmo em condições não-estressantes - então estaríamos testemunhando algo muito mais subversivo: a simulação farmacológica de um estado de emergência celular como estratégia preventiva.
Ou seja: nem todo aumento de ThTP é sinal de algo significativo — depende de onde ele está sendo produzido. Se é no citosol, pode ser apenas ruído; se é na mitocôndria, talvez estejamos diante de uma linguagem bioquímica que a célula usa para responder ao mundo.
Proteínas que se ligam à tiamina
Isso é interessante. Bettendorff conta sobre proteínas que se ligam especificamente à tiamina ou aos seus derivados fosforilados. Mas isso não forma uma coenzima.
O mais relevante:
Um grupo da Ucrânia (Yulia Parkhomenko) isolou, do cérebro de rato, uma proteína 103–107 kDa capaz de se ligar a:
ThMP
ThTP
(em menor grau) ThDP
Essa proteína foi isolada em sinaptossomos, localizada principalmente nas vesículas sinápticas e na membrana do terminal pré-sináptico — sugerindo que possa atuar como um “receptor de tiamina” pré-sináptico, modulando a liberação de neurotransmissores.
Isso é crucial porque isso explicaria efeitos neurológicos da sulbutiamina que vão além do metabolismo energético. A sulbutiamina aumenta alguns ésteres de tiamina -- isso estimularia tais receptores, especulativamente. Com isso, os efeitos da sulbutiamina (anti-fadiga, anti-apatia, cognitivos) podem estar relacionados à modulação sináptica direta, não apenas ao metabolismo mitocondrial.
Então, podemos dizer que há dois mecanismos possíveis para a sulbutiamina:
Mitocondrial (via ThTP como sinal de emergência metabólica)
Sináptico (via proteínas ligantes de tiamina modulando liberação de neurotransmissores)
Tiamina na liberação de neurotransmissores
A tiamina e seus derivados ésteres fosfatados, por meio de papéis não-coenzimáticos, facilitam a neurotransmissão, provavelmente por potencializar a liberação de ao menos três neotransmissores: acetilcolina, dopamina e noradrenalina, o que foi demonstrando no cérebro mamífero. A deficiência de tiamina, por sua vez, gera "disfunção de vesículas sinápticas", com menor liberação de dopamina, glutamato ou acetilcolina.
Uma hipótese é a de que ésteres-fosfato de tiamina levem à fosforilação da sinapsina I, proteína que regula a fusão de vesículas com a membrana sináptica para a liberação de neurotransmissores.
Isso sugere que, indiretamente, a sulbutiamina poderia aumentar globalmente a liberação de neurotransmissores.
Efeitos terapêuticos
Bettendorff fala de efeitos "benéficos" de tiamina e de precursores de tiamina farmacêuticos com maior biodisponibilidade. Aqui, estamos entrando num território de doses suprafisiológicas de tiamina. Ele cita que a tiamina, em plantas, é uma molécula de sinalização que ajuda na adaptação a situações de estresse. Em células de mamíferos: a tiamina protege células da retina contra a toxicidade do glutamato; e promove a sobrevivência de neurônios do hipocampo.
Moléculas hidrofóbicas, como a sulbutiamina, "furam o bloqueio" de transporte por proteínas de membrana que regula a entrada de tiamina nas células. Nesse caso, a sulbutiamina cruza a membrana livremente - aumentando os níveis de tiamina livre, que pode ser subsequentemente fosforilada.
O Mistério da Sulbutiamina: Como uma Contradição Simples Revelou um Paradigma Errado
Às vezes, as descobertas mais importantes surgem não de experimentos grandiosos, mas de pequenas inconsistências que se recusam a desaparecer.
O Dogma Inquestionável
Durante décadas, a literatura científica repetiu um mantra com convicção absoluta: "a sulbutiamina cruza facilmente a barreira hematoencefálica devido ao seu caráter lipofílico." Bulas médicas, artigos peer-reviewed, bases farmacológicas - todos ecoavam essa verdade aparentemente estabelecida. Era o tipo de "fato" que ninguém questionava porque todos "sabiam" que era verdade.
Até que resolvi verificar as fontes.
O Primeiro Fio Solto
Em 1990, Bettendorff e cols. demonstraram que a administração de sulbutiamina a ratos aumentava significativamente os níveis cerebrais de tiamina, ThMP, ThDP e, sobretudo, ThTP — o trifosfato de tiamina, um derivado menos conhecido, mas potencialmente neuroativo. O aumento foi evidente em múltiplas regiões do cérebro, e não foi reproduzido com tiamina convencional.
Porém, em uma revisão posterior (2013), o mesmo autor escreveu:
"None of these precursors has ever been demonstrated to reach the brain parenchyma… No important increase in brain thiamine levels are observed even with these derivatives."
Como a mesma pessoa pode negar o fenômeno que ele mesmo demonstrou?
A lenda da travessia
A afirmação de que sulbutiamina “cruza a BHE” provavelmente nasceu da combinação entre:
A observação legítima de efeitos centrais;
A estrutura lipofílica da molécula;
A ausência de métodos analíticos sensíveis nos primeiros estudos.
Essa associação levou ao que hoje reconhecemos como um fenômeno comum: a repetição acrítica de uma hipótese plausível até que se torne dogma. Uma mentira contada mil vezes...
Porém, estudos cromatográficos recentes mostram que a sulbutiamina não é detectada no sangue ou no cérebro em sua forma original. Isso sugere uma conversão extremamente rápida, sobretudo pela ação de sistemas de glutationa e tioredoxina. Ainda assim, seus efeitos centrais são inequívocos.
O paradoxo da benfotiamina
Esse quadro fica ainda mais instigante quando comparamos a sulbutiamina com a benfotiamina, outro derivado da vitamina B1. Ambas elevam tiamina plasmática, ambas são pró-fármacos — mas só a sulbutiamina tem efeitos centrais. Se ambas operassem através do mesmo mecanismo de fato - conversão sistêmica em tiamina, que é em seguida entregue aos tecidos - então deveriam apresentar perfis neurológicos similares.
Porém,
Sulbutiamina: Aumenta significativamente tiamina cerebral, produz efeitos cognitivos claros, modula neurotransmissores.
Benfotiamina: Falha completamente em elevar tiamina cerebral, sem efeitos neurológicos, limitada a ações periféricas.
Lembrando: segundo Bettendorff - eles teriam o mesmo mecanismo:
These molecules are either relatively hydrophobic (sulbutiamine, fursultiamine) or are converted to a hydrophobic precursor (benfotiamine) allowing them to cross membranes relatively freely (Fig. 3). The general effect of these derivatives is to rapidly increase circulating thiamine to levels higher than those obtained by an equivalent dose of thiamine. It must be emphasized than none of these precursors has ever been demonstrated to reach the brain parenchyma. They are all converted to thiamine either during the passage from intestine to blood or in the liver. As the blood-brain barrier strongly limits thiamine uptake by the brain (thiamine entry could be limited by a self-exchange), no important increase in brain thiamine levels are observed even with these derivatives.
Mas como dois compostos seguindo supostamente o mesmo mecanismo produzem resultados cerebrais diametralmente opostos?
A resposta parece estar calcada em:
Estrutura química: sulbutiamina é um dissulfeto lipofílico; benfotiamina é um tioéster fosforilado e mal absorvido.
O Modelo Multi-Via: Além da Conversão Simples
A análise integrada sugere que sulbutiamina opera através de múltiplas vias complementares que explicam tanto sua eficácia cerebral quanto a falha de compostos similares:
Penetração Direta Limitada: Uma fração pequena mas significativa pode cruzar a barreira hematoencefálica antes da conversão completa, aproveitando sua natureza lipofílica genuína.
Redução Capilar Localizada: Capilares cerebrais contêm sistemas glutathione/thioredoxin abundantes que reduzem rapidamente dissulfetos de tiamina, criando "zonas de conversão" na interface da barreira hematoencefálica. Há indícios de que a sulbutiamina seja reduzida já nos capilares cerebrais, gerando tiamina e tiamina-fosfatos localmente — o que explicaria seus efeitos regionais em córtex, hipocampo, cerebelo.
Efeitos metabólitos específicos
A redução da ponte dissulfeto da sulbutiamina gera metabólitos contendo grupos tiol livres (–SH), que podem ter propriedades neuroprotetoras e antioxidantes independentes da simples entrega de tiamina. Esses tióis bioativos podem:
✅ Sequestrar espécies reativas de oxigênio e nitrogênio (ROS/RNS);
✅ Regenerar a glutationa reduzida (GSH), o principal antioxidante intracelular;
✅ Modificar canais iônicos ou proteínas sinápticas por reação com cisteínas reativas;
✅ Interagir com receptores ou sistemas redox neuronais de forma independente da tiamina.
Essas reações podem ocorrer tanto no cérebro quanto no fígado, já que ambos são ricos em sistemas redutores como glutationa redutase e tioredoxina.
No fígado — órgão de primeira passagem da sulbutiamina — a liberação de tióis poderia reforçar o sistema antioxidante hepático, favorecendo a regeneração de GSH, atuando como agente redutor, e até participando de processos de quelação de metais pesados, como fazem compostos tiolados clássicos (ex.: N-acetilcisteína, dimercaprol, mesna).
🔬 Nota: embora esses efeitos sejam altamente plausíveis por analogia farmacológica, ainda carecem de investigação experimental direta no contexto da sulbutiamina. Esta hipótese é, portanto, especulativa, mas sustentada por paralelos bioquímicos robustos.
Amplificação Sinérgica: Esses mecanismos se potencializam mutuamente, criando eficácia cerebral que nenhum mecanismo isolado poderia alcançar.
O Erro Histórico e Suas Consequências
A crença generalizada na "travessia fácil da barreira hematoencefálica" parece ter surgido de uma sequência clássica de inferências não verificadas: efeitos neurológicos observados + estrutura lipofílica = travessia direta da barreira. Essa assunção se cristalizou em dogma através de décadas de citação acrítica.
Simultaneamente, a incapacidade de detectar sulbutiamina intacta no tecido cerebral, mesmo com métodos modernos, sugere que qualquer penetração direta seria modesta - suficiente para criar diferenças funcionais significativas, mas insuficiente para detecção analítica convencional.
Implicações: Quando Detalhes Moleculares Importam
Esta descoberta transcende a farmacologia da sulbutiamina. Ela ilustra como diferenças estruturais aparentemente menores - dissulfetos versus tioésteres, lipofílico versus anfifílico - podem determinar completamente o perfil terapêutico de um composto.
Para o desenvolvimento de neuroprotetores, isso significa que a otimização deve focar não apenas na bioavailabilidade sistêmica, mas na capacidade de ativar múltiplas vias de entrada cerebral simultaneamente. Para a prática clínica, sugere que diferentes derivados de tiamina podem ser genuinamente complementares, cada um endereçando aspectos distintos da fisiopatologia neurológica.
O Valor das Contradições
O mais fascinante nesta história não são as respostas encontradas, mas como as contradições iniciais - aparentemente embaraçosas inconsistências na literatura - se revelaram portais para uma compreensão mais profunda. Em ciência, o desconforto de dados conflitantes frequentemente sinaliza que nossa compreensão atual é inadequada.
Eu, Matheus, sou alguém que lido bem com ambiguidades. Tenho uma tolerância excepcional à incerteza.
Em um mundo de verdades aparentemente estabelecidas, as contradições podem ser nossos melhores professores.
Conclusão provisória, enquanto não leio novos artigos:
A travessia da sulbutiamina não é uma travessia literal, mas funcional. Ela não precisa entrar inteira: basta que ela saiba onde desmontar. Seu metabolismo é seu modo de navegação.
A confusão conceitual entre presença molecular e efeito funcional gerou um mal-entendido que atravessou décadas de literatura. Corrigir esse erro não é apenas um gesto de precisão — é um passo necessário para entendermos com mais clareza como essa substância realmente age.
Talvez, ao invés de buscarmos atravessar barreiras à força, devêssemos observar como certos compostos aprendem a se transformar na soleira da porta. A sulbutiamina é uma dessas moléculas — ela não exige passagem. Ela se dissolve em permissão.
Conclusões de Bettendorff:
Bettendorff lembra as funções da tiamina como coenzima, na forma de tiamina difosfato (ThDP). Como coenzima (na forma de ThDP), participa de praticamente todos os grandes eixos do metabolismo celular: produção de energia, síntese de ribose, ácidos nucleicos, lipídios e neurotransmissores. Não por acaso, o sistema nervoso — altamente dependente dessas vias — é particularmente vulnerável à sua deficiência.
Porém, o que ele acha mais intrigante é o papel de outros ésteres, como tiamina trifosfato, ThTP, que podem cumprir papéis mais sofisticados - como a sinalização de estresse metabólico e estados de exceção celular. Além disso, a própria tiamina tem receptores específicos para ela -- como demonstrado em sinaptossomas cerebrais. Essas proteínas que se ligam à tiamina parecem mediar a liberação de neurotransmissores. Ou seja: para além das funções de metabolismo energético, a tiamina aumenta a liberação de dopamina, acetilcolina e noradrenalina, comprovadamente.
Bettendorff reconhece o potencial terapêutico de interesse da tiamina em Alzheimer e Parkinson.
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