domingo, 17 de março de 2019

Cognitina?: os efeitos da nicotina no desempenho intelectual

Melhora o alerta, ajuda a manter o foco, afia a memória e pode ser uma aliada na luta contra o Alzheimer. O problema: estamos falando da nicotina


[Atenção: não fume. Este artigo debate os efeitos da nicotina em sua forma isolada. Não tem intenção de prescrever ou encorajar seu uso sem prescrição]

Nicotina. Qual é a primeira coisa que vem à sua cabeça ao ler essa palavra?

Não é uma pergunta retórica. Pause por cinco segundos e imagine.

Enfisema, câncer de pulmão, vício? Talvez as figuras tenebrosas no verso das cartelas de cigarro? Se você é como a maioria, nicotina é uma palavra já carregada de noções negativas. Dificilmente, você pensará nela como uma substância capaz de melhorar o intelecto.

Não é à toa que seu cérebro evoca imagens assombrosas diante dessa palavrinha. A reputação sórdida da nicotina tem raízes naquele ditado: me diga com quem andas, te direi quem és. É uma entre as mais de 5000 substâncias encontradas no cigarro. Mas frequentemente todos os estragos do fumo caem na conta dela.

Separando os dois, muitos cientistas apontam que a nicotina "pura" (administrada por goma de mascar ou adesivo) tem pouco poder de tornar alguém viciado. O que é mais intrigante: pode melhorar a memória, atenção, função motora e humor de pessoas saudáveis, em doses controladas.

"O grande problema com a nicotina é que ela é encontrada em cigarros. As pessoas não conseguem dissociar os dois conceitos: nicotina e fumar". Quem argumenta é a PhD em Bioquímica e neurocientista, Maryka Quik. Ela sabe do que fala: já escreveu dezenas de artigos sobre o  potencial da nicotina para tratar a doença de Parkinson.


Você não leu errado. Soa estranho pensar na nicotina como remédio - mas ela tem sido amplamente investigada como uma terapia para doenças neurodegenerativas [1]. E também para "turbinar" a mente de pessoas saudáveis.

"Até onde eu sei, a nicotina é a substância mais confiável com o objetivo de melhorar a cognição. Seus benefícios ao desempenho intelectual em pessoas saudáveis são mais comprovados do que de qualquer outro composto", afirma uma professora de psicologia experimental na Universidade de Sussex (Reino Unido).

Ela chega a comparar a nicotina com o famoso modafinil (Stavigile): "A evidência (provas científicas) de que o modafinil melhora as funções cognitivas nem de longe é tão forte quanto a evidência de benefícios da nicotina".

O poder da nicotina

E quais são essas evidências? Puxei a ficha corrida da nicotina e, de fato, há um leque de pesquisas que conectam seu uso com melhoras na performance mental em cérebros "virgens" - de não-fumantes.

Vale frisar, de novo, que estamos falando da nicotina isolada, administrada por via transdérmica, em adesivos (em doses de 7 mg, em geral) ou oral (em doses de 2 mg, em geral), e não do fumo. Você já sabe: fumar faz mal!

"Há alguns efeitos melhoradores da cognição, porque a nicotina é um estimulante. Mas é interessante, porque é uma droga incomum, no sentido de que (...) ela te deixa alerta quando você está cansado, e te acalma quando você está estressado", diz Neil Grunberg. Ele estuda os efeitos da nicotina e é professor numa universidade de ciências da saúde do governo federal dos EUA.

Para listar uma parcela desses efeitos e estudos (e algumas são bem curiosos):

A nicotina melhora a performance psicomotora
Exemplo: caligrafia A nicotina foi capaz de "melhorar a fluidez dos movimentos de escrita" em um ensaio clínico [2]. Quem usou nicotina também foi mais ágil. Hmm... Útil para fazer anotações com palestrantes que atiram palavras feito metralhadora?

Mas a pressa costuma ser inimiga da perfeição, não? Os autores observam que, geralmente, escrever rápido e escrever de forma legível andam na contramão. Não foi o caso. Os textos produzido sob nicotina tinham a mesma qualidade dos produzidos sob placebo. Em estudo anterior, a nicotina "confiavelmente aumentou a velocidade de digitação" [3].



A nicotina melhora a atenção e o alerta  
A nicotina melhorou significativamente o desempenho em uma avaliação neuropsicológica que mede a atenção sustentada [4]. Conferiu seu celular durante uma aula entediante? Distraiu-se ao dirigir porque estava cansado? São exemplos de falta de atenção sustentada - a capacidade de manter o foco e a vigilância.

Diante dos resultados, os autores sugeriram que "a nicotina age diretamente nas funções cognitivas, como a agilidade de processar informações, em vez de simplesmente aumentar a velocidade de respostas motoras". Outra investigação reforçou que a substância melhorou a concentração. A atenção do grupo placebo foi capengando ao longo de 80 minutos de teste - mas a nicotina preveniu isso [5]. Uma pesquisa mais recente e sofisticada replicou esses achados [6].

Outro estudo relatou que a nicotina agilizou o tempo de reação e produziu melhoras da sensação de alerta e vigor [7].

A nicotina afia a memória
Sabe quando você lê um texto, percebe que não entendeu nada e tem que voltar para a estaca zero? A nicotina parece combater isso. Sob seus efeitos, não fumantes conseguiram recordar mais detalhes de uma história que tinham acabado de ouvir. Os resultados apontam para uma melhora da memória verbal de curto-prazo [8].

Em outro estudo, cientistas mostraram a voluntários 25 cartões, cada um com uma palavra. Após uma breve distração, os participantes tinham que escrever o máximo de palavras que recordavam. Resultado: quem tinha usado gomas de nicotina antes do teste desempenhou muito melhor. "Esse estudo confirma fortemente os efeitos da nicotina na memória de curto-prazo" [9].

Batendo o martelo

No oceano de pesquisas sobre os efeitos da nicotina na inteligência, esses são só alguns artigos que eu pesquei. Há peixes no oceano - mas também há lixo, como artigos com conclusões equivocadas. Para dar um veredito sobre a nicotina, o ideal é selecionar as pesquisas de qualidade e integrar todos esses resultados numa bela análise estatística. Ainda bem, há pesquisadores que fizeram isso [10].

A conclusão desse mergulho - um resumo de 41 ensaios clínicos publicados entre 1994 e 2008 - foi de que a nicotina é capaz de beneficiar, de forma significativa, o desempenho em habilidades motoras, atenção e memória. Em específico, seis domínios cognitivos são melhorados:
  • controle motor fino
  • atenção sustentada - capacidade de manter o foco
  • tempo de reação/resposta
  • atenção orientada - capacidade de perceber informações importantes
  • memória de curto-prazo episódica (precisão)
  • memória operativa
Dissociando nicotina e tabaco
Droga maravilha ou substância diabolicamente viciante? A New York Times Magazine, em 1987, sentencia: "a nicotina é tão viciante quanto a heroína, cocaína ou as anfetaminas". Um ano depois, o governo americano lançou um relatório de 640 páginas, também colocando a nicotina par-a-par com a heroína.

O problema - de novo - é que essas conclusões não vieram de estudos sobre a nicotina isolada, mas de estudos sobre o fumo. E isso faz uma diferença danada. Vambora separar o joio do trigo?

Menos de 10 segundos após tragar um cigarro, a nicotina e um combo de outras substâncias atingem o cérebro de uma só vez. A súbita onda desse coquetel químico faz disparar circuitarias neurais de prazer e recompensa, envolvidas com o vício.

Mas quando a nicotina é consumida por via oral ou transdérmica, as doses são menores e ela chega ao cérebro bem mais lentamente. "Quanto mais rápida a nicotina é administrada, maior o risco de dependência", comentam estudiosos num artigo recente sobre o uso da droga no Alzheimer e outras doenças [11].

"De fato, quando administrada por outros meios, acredita-se que a nicotina não tenha um potencial de abuso elevado", concluem.

E não é só por isso que torna o cigarro tão viciante. É uma tarefa desafiadora deixar ratos e animais viciados em nicotina pura. Mas quando ela é misturada com outros componentes presentes no fumo, como o acetaldeído [12], tranicilpromina [13] e outros [14], as cobaias ficam fanáticas - os compostos atuam em "equipe" e potencializam o efeito da nicotina.

Nicotina vicia?

A nicotina foi satanizada nos anos 80 - mas não está totalmente absolvida. Por exemplo, há relatos de vícios em gomas de mascar de nicotina em humanos que nunca fumaram. Porém, "esse fenômeno é raro" e cientistas reconhecem que o produto é "significativamente menos perigoso que o tabaco" [15].

Outro estudo preliminar demonstrou que, em metade das pessoas, a nicotina produziu sensações agradáveis, como bem-estar e alerta. Tendo que escolher entre ela e um placebo, preferiam a nicotina. Mas na outra metade, as sensações foram aversivas, como náusea e tontura. Eles preferiam o placebo. Além disso, ninguém utilizou tabaco ou nicotina ao fim do estudo [16].

Nicotina é considerada viciante. Mas há pouco consenso e estudos sobre o grau de vício produzido por nicotina oral/transdérmica em doses pequenas e espaçadas em não fumantes. O assunto ainda é controverso.

Considerando os estudos em animais e humanos, minha interpretação: o perfil parece ser mais próximo daquele da cafeína do que de drogas como anfetaminas, cocaína e heroína. O uso em longo-prazo, principalmente, carece de estudos.

Dá câncer? Faz mal à saúde?
Além de dependência, câncer é outra palavra forte que vem à mente quando se fala em nicotina. "Câncer e outros problemas de saúde causados pelo abuso de tabaco devem-se sobretudo a outros componentes do fumo como monóxido de carbono e alcatrão. São esses compostos, em vez da nicotina em si, que eventualmente prejudicam o fluxo sanguíneo cerebral de fumantes", resumem os pesquisadores que avaliam os benefícios da nicotina em doenças neurodegenerativas [11].


Mas, de novo, outros problemas existem com a nicotina. Um adesivo de 21 mg de nicotina elevou a pressão arterial e a frequência cardíaca de não fumantes em um estudo [18]. É uma substância capaz de contrair os vasos sanguíneos - e, potencialmente, pode afetar a musculatura cardíaca.

A nicotina (separada do tabaco) não causa câncer - mas numerosos estudos em células e em animais demonstram que ela acelera o crescimento de tumores já existentes [19]. Doses elevadas são tóxicas e podem causar náusea, tontura, dores de cabeça. Dose única de 60 mg, via oral, pode ser fatal [20].

Conclusão

Fumar é um desastre - e só loucos vão debater isso. Mas é um erro colocar a nicotina e os cigarros no mesmo balaio. "É hora de 'des-satanizar' a nicotina", diz Ann McNeill, professora britânica, especialista em políticas de tabaco.

Desacoplando os dois, a nicotina oral ou transdérmica mostra-se uma substância com efeitos positivos na cognição. "Ela aumenta o foco, o alerta, além da habilidade de lidar com diferentes estímulos ao mesmo tempo, atenção sustentada, reduz a distração. E também demonstrou efeitos promissores em doenças que causam deterioração das funções mentais", resume Neil Grunberg.

Mesmo assim, cientistas alertam que os potenciais riscos não compensam os benefícios. Além dos efeitos cardiovasculares, não sabemos bem sobre seu poder de viciar. E muito menos sobre a exposição em longo prazo à nicotina. Estamos no escuro - e nesse caso, o ideal é pecar pela cautela.

Por ora, é quase unanimidade entre estudiosos desencorajar o uso de adesivos ou gomas de nicotina para qualquer outro propósito além do aprovado: parar de fumar. Em tempo: avançam os estudos sobre a nicotina - e análogos com melhor perfil de segurança - na cognição. É bem provável que o assunto continue em alta e mais respostas surjam.

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